domingo, 17 de setembro de 2017

O GITA FICOU ENCANTADO!

(Para o conterrâneo e amigo João Garcia, em homenagem as suas palavras publicadas no jornal Correio do Sul, edição de 15.09.2017)

Arroio Grande, 9 de setembro de 2017. O Ginásio de Esportes Gita, o popular “Gitão”, estava lotado quando, por volta da meia-noite, as luzes se apagaram e um evento até então previsível ganhou ares superiores e transformou-se radicalmente num espetáculo poucas vezes visto na cidade.
De repente, o ruído das torcidas parou, o burburinho das arquibancadas cessou, e os acordes de uma canção ecoaram por todo o Ginásio Municipal.
No meio da quadra, o saxofone do Clodomar, o popular “Orelha”, surgiu leve, despacito, não aparentando ser manejado somente por ele, senão que parecia ter um pouco o auxílio das mãos sensíveis do Nenê Balhego, quem sabe a maior virtuose da música que esta terra conheceu.
Atrás dele, preparados para executar o Hino Riograndense, o Jelson Domingues e o Alexander Ferreira também não pareciam ser somente eles, pois traziam alguma coisa do Weymar ao bandoneon e do Galinho Perogildo ao violão, enquanto que o canto do Maicon Paiva reviveu Basílio Conceição, no faceiro vanerão em que se transformou o lindo Hino da Cidade.
Para completar, a Banda Militar, executando o Hino Nacional, relembrou a histórica Banda Farroupilha, e o Maestro Joãozinho ressurgiu moderno para fazer a plateia dançar um pedacim ao ritmo de você partiu meu coração.
Na quadra, na grande final de Futsal, dois times de rapazes, alguns até garotos, pareciam repetir os feitos dos velhos craques do passado do Arroio Grande.
De um lado, o goleiro Oscarzinho lembrava o seu pai, o lendário Ósca, enquanto o menino Todynho, pelo outro lado, parecia ninguém menos que o antológico Osvaldo Brito, o extraordinário arqueiro que rivalizou com o Oscar os maiores duelos que a cidade já viu.
Os demais – Lorenzo, Marcelo Vidal e Glikson; Bido, Marquinho e Matheus – não jogaram somente por eles, tinham alguma coisa indecifrável dos grandes craques do Arroio Grande de outros tempos; quem sabe a técnica de um Wilson do Ari, a elegância de um Adel, de um Zé Marfisa; quem sabe a tenacidade de um Chirú, a entrega de um Ademir, de um Caminhão, mas sempre, sempre, a vontade de vencer de um Ayres, de um Betinho, de um Marrequinho e de tantos outros entre os que ainda estão e os que já não estão mais entre nós.
Os técnicos Batata e João Victor foram estrategistas e motivadores, como Arizinho e Charuto no passado, e os gigantes Henri e Teteu, cada qual pelo seu lado, foram grandiosos como o próprio Gita e como o mito Ari Lúcio. E olha que ainda faltou El Mago Mincho...
Por tudo, o resultado do título do Manda Brasa sobre os Meninos da Vila só poderia vir mesmo como veio, um 5 X 4, faltando apenas 20 segundos para terminar a prorrogação.
Satisfeitos, o Prefeito Henrique e a Secretária Ivana comemoravam o resultado de um das melhores realizações esportivas da Cidade, enquanto a atuação do Baltazar e dos demais assessores lembrou a dos grandes organizadores dos eventos de futebol do Arroio Grande.
Em algum lugar de um outro plano, Bonifácio Ubirajara da Porciúncula Nuñez, o velho Gita, deve ter sorrido encantado, pois o seu nome e a sua história de desportista estavam mais uma vez sendo honrados.
E quando já era madrugada do outro dia, o público agradeceu e pode enfim se despedir daquela inesquecível noite de 9 de setembro de 2017, o dia em que uma simples partida de futebol foi muito mais que um jogo de futebol, e fez a Cidade dormir feliz, satisfeita e orgulhosa da sua própria grandeza.
(Publicado originalmente no jornal "A Evolução", edição de 15.09.2017, a pedido do jornalista Jorge Américo Borges)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

PROVOCAÇÃO (III)

O PADEIRO ASSASSINO
(ou O FILHO "ILUSTRE" QUE NINGUÉM QUIS)
Há exatos cento e dois anos, no dia 8 de setembro de 1915, uma quarta-feira, por volta das 16h30min, o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, o homem mais poderoso da história da República, que havia recém ingressado no saguão principal do Hotel dos Estrangeiros, no Centro do Rio de Janeiro, foi apunhalado pelas costas por um padeiro desempregado, um homem do povo, um “Zé ninguém”, vindo a falecer logo em seguida, em razão do profundo sangramento decorrente do ferimento que sofrera na região do abdomen.
Sobre a vida e a morte de Pinheiro Machado – advogado, general e senador – muito já se escreveu, sendo desnecessário reproduzir aqui a sua trajetória, pois trata-se, talvez, do mais poderoso político da história do Brasil, especialmente no período republicano.
Mas, e o seu assassino? O homem que matou o Senador, o padeiro desempregado, apontado como desertor do Exército e desequilibrado mental; o que se sabe dele até hoje, decorridos 102 anos do assassinato de Pinheiro Machado?
Francisco Manço de Paiva, ou Francisco Manço Paiva Coimbra, contava 32 ou 331 anos por ocasião do assassinato e teria morrido próximo aos 80 anos de idade, após cumprir 20 dos 30 anos de prisão a que fora condenado pela morte do Senador, até ser indultado pelo Presidente Getúlio Vargas em 1935. Em 1957, vivia como aposentado do Instituto Brasileiro do Café, aos 73 anos de idade,2 tendo falecido no final dos anos 1960.
Mas o detalhe que cerca a figura do assassino confesso de Pinheiro Machado, é que, segundo contou o seu pai – Francisco de Paiva Coimbra – por ocasião do julgamento3 do filho, este teria nascido em Arroio Grande, RS, em 1884, em contradição ao que dissera o próprio Manço de Paiva quando do exame que verificou a sua sanidade mental, ocorrido dois meses antes da realização da sessão do júri, sendo que o réu garantiu ser natural da vizinha cidade de Jaguarão, onde nascera “em 1889 ou 1890” (?).
Ao que se sabe, Arroio Grande e Jaguarão nunca “brigaram” pela paternidade de Paiva Coimbra, afinal, como bem disse o escritor pelotense Mário Osório Magalhães em artigo publicado no Jornal Diário Popular, ainda que valesse a pena desfazer a dúvida (...) “tenho certeza que faria murchar um pouco o bairrismo sadio que se vê reflorescer a cada dia, de forma constante e crescente, no coração dos prezados habitantes de Arroio Grande e Jaguarão.4
Mas que fica a curiosidade fica, cabendo também uma provocação aos investigadores da história oficial de ambas as cidades5 para responder a pergunta pela qual até hoje ninguém demonstrou muito interesse: afinal, Francisco Manço de Paiva Coimbra, o “padeiro assassino”, é “patrimônio” de quem? Da Cidade Simpatia (Arroio Grande) ou da Cidade Heróica (Jaguarão), ou, quem sabe, de nenhuma delas6?
Com a palavra, os especialistas: alguém se habilita a proclamar a paternidade desse filho “ilustre”?
1 - Revista “Aventuras na História”, janeiro de 2016.
2 - Jornal “A Noite” (RJ), edição de 9 de julho de 1957.
3 - Notas do Júri. O julgamento rendeu um filme, concluído em 1917, com o título de O julgamento de Manso Paiva: o assassino do General Pinheiro Machado. O documentário foi exibido no Cine Central, em São Paulo, em 27/07/1917. Nos catálogos de cinema aparece hoje como filme “desaparecido”.
4 - Artigo publicado no Jornal Diário Popular, Pelotas, RS, edição de 19.06.2005.
5 - Em Arroio Grande, o Grupo Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural já se ocupou parcialmente do tema, quando da publicação de uma fotografia sobre a missa em homenagem à morte de Pinheiro Machado na Cidade.
6 - Existe ainda a notícia de que Manço Paiva seria natural de Cacimbinhas, antigo nome de Pinheiro Machado, e que o pai do assassino teria criado a versão de que o filho teria nascido no Arroio Grande para a família poder permanecer morando naquela cidade (Pinheiro Machado). 
Imagens: 1ª) Manço Paiva e Pinheiro Machado; 
2ª) O assassino e o local do crime: o Hotel dos Estrangeiros 
(Revista Aventuras na História)
 3ª) A assinatura de Manço de Paiva 
 4ª) A recepção do Hotel, onde Manço Paiva aguardou para apunhalar Pinheiro Machado 
(Fotografia: Rio Then)
5ª) A notícia do assassinato - Revista da Semana, Ed. 31 de setembro de 1915
6ª) A entrevista do assassino - 42 anos depois - Jornal A Noite, RJ, julho de 1957
ADENDO*:
"(…) Sempre guardado á vista, o assassino Francisco Manso de Paiva Coimbra, passou a noite calmo, dormindo algumas horas, recusando, entretanto, qualquer alimentação, a não ser café. Tem o aspecto abatido, pronunciadas olheiras e a barba mais crescida. Veste ainda o mesmo terno escuro com que foi preso e se deixa photographar sem a menor reluctancia.
O maior temor que o criminoso manifesta é o que lhe poderá acontecer na Casa de Detenção, para onde não deseja ir. Sabe que o director desse presidio era amigo particular do general Pinheiro Machado, e se arreceia de ser maltratado ali. Isso mesmo já o criminoso hontem expandia ao dr. chefe de pollicia, quando interrogado.
Na delegacia do 6o districto, quando, ás 11 horas da manhã de hoje estava sendo identificado, um dos nossos companheiros logrou falar ao criminoso.
Apezar de se mostrar calmo, Francisco Manso de Paiva Coimbra ao assignar as fichas tinha a mão tremula.
Interrogando-o, disse-nos o assassino que as suas declarações são as de seu depoimento, já publicado em todos os jornaes em que affirmou estar satisfeito em haver cumprido um voto de que ha muito fizera.
Disse-nos ter pae e mãe vivos, no Rio Grande do Sul, de onde é filho; seu pae é Francisco de Paiva Coimbra, portuguez e padeiro, e sua mãe D. Maria de Jesus, natural do Rio Grande. Seu parente é apenas sua irmã Conceição, tambem no Rio Grande, não tendo aqui no Rio senão ligeiros conhecimentos.
Perguntando-lhe si havia já sido preso alguma vez, mesmo com o nome de João Dias Regis, respondeu-nos que nunca fora preso e se trocou de nome foi por ter desertado do Exercito.
Dentre outras declarações prestadas, quer á policia, quer á imprensa, o assassino disse não ser habito seu frequentar "meetings" nem reuniões politicas, apenas tendo ido ao ultimo realisado nesta capital, que diziam ser contra o general Pinheiro. Fôra este o único "meeting" a que compareceu. (...)"
(Jornal “A Notícia”, Rio de Janeiro, Ed. de 9 de setembro de 1915).

*O autor optou por preservar o português da época.

domingo, 3 de setembro de 2017

PROVOCAÇÃO (II)


A “COMPRA DE SUBSTITUTOS”
Muito se diz que a Guerra do Paraguai (1864–1870) foi “uma guerra de pobres e de escravos”, já que do lado brasileiro1 o recrutamento compulsório de despossuídos e de ex-cativos libertos foi bastante significativo em comparação ao número de homens brancos livremente alistados.
O que ainda se comenta com um certo constrangimento, sempre do lado brasileiro, é que muitos dos escravos foram encaminhados para a guerra de uma maneira bastante embaraçosa à classe branca dominante, pois vigorava na época a chamada “compra de substitutos”, isto é, a possibilidade de se comprar escravos e de enviá-los para lutar no lugar dos seus proprietários, ou em substituição aos filhos destes.
Funcionava mais ou menos assim: o comando do exército imperial entrava em contato com os chefes políticos regionais, estes dirigiam-se às autoridades locais, levantavam dados e informações, e recrutavam jovens para lutar na guerra. Os pais dos jovens que possuíam escravos tinham direito de trocar os seus filhos alistados pelos cativos e os que não tinham escravos podiam comprá-los. Proposta a troca, a mesma era realizada, e os escravos iam para a guerra lutar e morrer no lugar dos brancos recrutados, ou, mais remotamente, para retornarem livres, se e quando retornassem.
Pois consta que no Arroio Grande “entre os dias 19 de agosto e 1º de setembro de 1865, nove (9) escravos ganharam a liberdade, todos eles para servirem como substitutos dos seus senhores ou dos filhos deles no Exército, durante a Guerra do Paraguai. A história registra apenas os seus prenomes, Protázio, Aleixo, Antônio, Jacinto, Marcelino (o mais velho, com 36 anos), José, Vicente, Luciano e Cipriano; nada mais sabemos deles, se sobreviveram, ou se morreram lutando por uma pátria ingrata, pois deles a história oficial não se preocupa2.
Pois hoje, 152 anos depois, mesmo com todos os recursos da internet e com as inúmeras fontes e instrumentos de pesquisa disponíveis, ainda nada se sabe do destino desses substitutos, sendo que os substituídos acabaram em muitos casos virando nome de rua, denominação de praça, tornando-se doutores, proprietários de terras, ricos patrões, ampliando com isso o predomínio das classes brancas dominantes através dos séculos.
Sem pretender entrar na discussão rasa acerca da postura de quem, podendo, não mandaria outro para lutar (e morrer) na guerra no lugar de um filho seu ou de si próprio, verdade é que, historicamente, a questão permanece carecendo de um maior aprofundamento, e, no caso do Arroio Grande, impõe ao menos duas indagações: 1ª) o que realmente aconteceu3 com os escravos do Arroio Grande enviados para lutar na Guerra do Paraguai como substitutos dos filhos dos seus senhores? 2º) quem foram exatamente os substituídos?
Com a palavra, os especialistas.
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1 - Do lado paraguaio sequer é possível fazer qualquer estimativa, já que entre 1866 e 1867 toda a população masculina entre dez (sic) e 60 anos teria sido recrutada (cfe. a historiadora Milda Rivarola – La polemica francesa sobre la guerra grande, Editorial Histórica, 1988).
2 - O Dr. Sérgio Canhada já se ocupou do tema em excelente artigo intitulado Os sem genealogia, publicado em “um site do Uruguay” e no “Blog do Canhada”, neste último em data de 27.10.2013. As declarações do Sérgio acima transcritas foram prestadas originalmente para o Jornal “A Evolução”, edição de 23.03.2007, em matéria produzida pelo autor deste texto.
3 - Flávio Basílio Silveira, o “Camões”, afirma que o seu trisavô, Angelino Pereira das Neves, enviou para a Guerra do Paraguai, para lutar em seu lugar, o escravo Manoel Velho, que teria retornado, finda a guerra, trazendo uma lança de combate que permaneceu na propriedade dos seus “senhores” durante décadas.   
Na imagem do alto, um comerciante compra e liberta um escravo enviando-o para a Guerra do Paraguai. Tal gesto era visto então como patriótico, pois segundo a lógica vigente contribuía para a diminuição do número de escravos e o aumento dos soldados.
(Revista Semana Ilustrada, 11 de novembro de 1866).
Abaixo, algumas das diversas etnias africanas escravizadas e trazidas para o Brasil no período da colonização - Congo, Benguela, Mina, Rebollo, Cabinda e Quinoa, todas citadas na canção Zumbi, de Jorge Benjor (1974), referência obrigatória sobre o tema nas aulas de história do período.
Imagens captadas pelo autor deste texto junto aos corredores de um hotel do Rio de Janeiro.